Entenda como a espiritualidade pode ajudar a medicina convencional

A identificação dos “primeiros médicos” com a figura de sacerdotes, xamãs, e curandeiros, confunde-se na história. Isso fez com que a medicina vivesse um período ‘mágico-religioso’, iniciado a.C e que se estendeu até o século XVI, no Renascimento. É nesse momento que o homem passa a ter compreensão mais antropocêntrica do seu ser e da realidade, contrapondo-se aos pensamentos sobre a natureza, até então sacralizados e dogmatizados pela forte influência que o poder da Igreja exercia na Idade Média. Dava-se início à aproximação da medicina com a ciência, que culminou, no século XIX, com o estabelecimento da medicina científica, baseada na experimentação e não só na mera experiência.

Foi durante a Segunda Guerra Mundial que se passou a aceitar que corpo e mente participavam do processo de saúde-doença. Muito mais recentemente - 20 a 30 anos atrás - é que se percebeu que esse complexo mente-corpo e o modelo biológico não eram suficientes para responder à complexidade desses processos. “Muitos trabalhos passam a mostrar as respostas obtidas a partir do conceito de espiritualidade, que se acrescentam aos resultados científicos. Ciência e espiritualidade não são opostos. Eles se somam. Um não é impeditivo para o outro”, afirma o urologista Sheldon Menezes.

Hoje, dois terços das universidades norte-americanas têm no seu currículo obrigatório eletivo matérias sobre espiritualidade e desenvolvem estudos sobre o tema. Estamos falando de Harvard, Stanford, Duke, grandes universidades dos EUA, principal polo de formação de opinião médica.

Nesse contexto, é preciso que haja uma compreensão de conceitos. Foram necessários diversos encontros mundiais de autoridades no assunto para se chegar a uma ideia consensual de espiritualidade que pudesse ser utilizada como referência para todos os estudos na saúde. Isso aconteceu em 2013. “De uma maneira geral, espiritualidade, em primeiro lugar, é um aspecto dinâmico, intrínseco ao ser humano e que tem a ver com a busca por um propósito, por um sentido maio pra vida, que necessariamente inclui a transcendência, uma relação com algo de outra ordem, maior, que não engessa no conceito de Deus, mas que aponta para uma força, que pode ser o universo, a sabedoria, uma verdade universal, que transcende a condição humana, está para além”, diz a cardiologista Maria do Rosário Toscano von Flach, que integra o Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular da Bahia (Gemca-BA).

Para o grupo, espiritualidade é um estado mental, que leva a pessoa a ter sentimentos benéficos para a saúde vascular. Quais são eles? Perdão, esperança, altruísmo, compaixão, gratidão, entre outros. “Isso tudo favorece a vida do coração e pessoal. Em contrapartida, o egoísmo, a raiva contida, a mesquinhez e o rancor fazem mal ao coração e fazem com que a pessoa viva pior, adoeça mais e morra mais de doenças do coração”, explica Dra. Lucélia Magalhães, também integrante do Gemca-BA.

Avaliar esses sentimentos, ações, motivações do viver, no entanto, não é uma coisa simples. Não é fácil como medir pressão, colesterol ou glicemia. São variáveis muito complexas. Ainda assim, trabalhos científicos mostram que pacientes espiritualizados envelhecem com bem estar maior, levam menos tempo internados, se recuperam mais em determinados processos de alguns tipos de transtornos mentais, como depressão e ansiedade e se envolvem menos com drogas lícitas e ilícitas. De acordo com Dr. Sheldon, mesmo utilizando um modelo preparado para a ciência, ainda se observa a resposta da parte espiritual. “São estudos que envolvem a espiritualidade a partir de uma análise cartesiana e comprovam seus efeitos no indivíduo”, explica Dra. Lucélia.

 

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Comprovações científicas

Cabe aqui diferenciar espiritualidade de religiosidade. A primeira não inclui, necessariamente, a segunda. Uma pessoa pode não acreditar em uma divindade, mas ter uma busca por propósito, que tem a ver com a humanidade e consigo mesma. Já a segunda é fruto da fé, que não se demonstra, é confessional e não precisa de provas. “Não há como quantificar a fé. Em nossa formação médica, em ciência, em saúde, tudo tem de ser provado, sob pena de você não poder ensinar nas instituições de educação formais”, argumenta Dra. Lucélia, uma das responsáveis pela implementação de uma disciplina, a princípio optativa, no currículo da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

As provas não são difíceis de encontrar. Além de centenas de estudos, a tecnologia ajuda a ‘quantificar’ os efeitos da espiritualidade no organismo humano.  Uma angioressonância especial por emissão de positron, por exemplo, é capaz de identificar regiões do cérebro ativadas e quais as consequências dessa ativação na descarga de determinados hormônios no organismo, sejam eles, em determinadas situações, bons ou ruins. A ressonância magnética funcional também favoreceu pesquisas sobre o assunto, sobretudo o que diz respeito à meditação. “Não é fácil mensurar as alterações cerebrais de quem frequenta ou não um templo, porque muitas outras variáveis poderão criar essa ou aquela imagem. Mas na imagem cerebral de um monge meditando se vê a grande diferença de ativação de algumas áreas responsáveis pelo planejamento de ações e tomada de decisões, o que pode impactar na maior adesão de um tratamento”, exemplifica Dra. Maria do Rosário, adepta da prática e orientadora de um grupo de médicos que aderiram à ‘técnica’ para trabalhar questões relacionadas ao exercício profissional.

De acordo com Dr. Sheldon, trabalhos científico ainda mostram que a espiritualidade gera uma harmonia que funciona como uma espécie de profilático contra determinados problemas de saúde. Sua experiência à frente da Fundação Lar Harmonia, em Piatã, confirma isso. A instituição atua, há cerca de 20 anos, no atendimento clínico e espiritual de quem os procura. Milhares de pessoas já passaram por lá e os resultados, segundo ele, ainda surpreendem a equipe, formada por mais de 100 profissionais, entre eles médicos, dentistas, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas e assistentes. “Mas é importante que se destaque que o tratamento espiritual em hipótese alguma substitui o tratamento médico ou psicológico. Ele entra como um trabalho suplementar ou complementar, mas nunca, em tempo algum, ele substituiu. A não ser por orientação escrita do médico assistente desse paciente”, destaca.

Isso respalda, inclusive, o fato de que médicos não espiritualizados se utilizem de ferramentas ligadas ao conceito de espiritualidade no tratamento de seus pacientes, da mesma forma que, por exemplo, um médico ou profissional de saúde valide a importância da atividade física mesmo que ele próprio não faça exercícios. “A tendência é que a inclusão da espiritualidade no manejo clínico assuma um patamar de importância em relação a todos os outros hábitos que compõem o estilo de vida saudável”, acredita Dra. Maria do Rosário. “Muitos estudiosos dizem que, em pouco tempo, aspectos de espiritualidade ou religiosidade serão abordados durante a anamnese. Não para que se critique ou se tente modificar, apenas para que se utilize como um mecanismo que auxilie no processo de cura, de compreensão do momento que estão atravessando”, concorda o urologista.

Consciência

Para Dra. Lucélia, essa abordagem começou a brotar porque a sociedade vem se preparando emocionalmente para isso “Se falássemos disso há 20 anos, não teríamos ninguém para nos ouvir. É num mundo polarizado que surgem possibilidades conciliadoras, equilibradoras. Confúcio dizia que a verdade estava sempre no caminho do meio, nunca nos extremos. Da mesma forma que o ser evolui, a sociedade evolui”, defende.

 

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Já sua colega Maria do Rosário alerta para a existência, ainda, de muito preconceito. “Ainda escuto muito ‘Ai, meu Deus, estamos voltando para a Idade Média. É rezar e pronto, fica bom’. Esse tipo de colocação é feita por absoluta ignorância sobre a relevância do tema e a seriedade dos trabalhos realizados em torno do assunto”, argumenta.

“Do ponto de vista médico, é a gente perceber que não é a ciência de um lado e a espiritualidade de outro. A gente deve ter a visão espiritualizada da ciência e a visão científica da espiritualidade para que não nos tornemos fanáticos. Se acreditarmos que tudo se resolve de forma espiritual, nos resvalamos num fanatismo perigoso, assim como a ciência sem espiritualidade cega, porque não consegue explicar muitas coisas que aconecem na vida, no universo que é uma pessoa”, finaliza Dr. Sheldon.