O médico cuida dos outros, mas quem cuida dele?

Casa de ferreiro, espeto de pau. O velho ditado popular caiu como luva sobre o resultado de um estudo realizado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1998. A tese de doutorado mostrou que os médicos não cuidam da própria saúde. Será que esse cenário mudou?

Para a cardiologista Maria do Rosário Toscano von Flach, as escolas de medicina, hoje,  já lidam com a questão, que é bastante complexa, não pode ser observada apenas de um ângulo e tampouco se estabelecer uma relação de causa-efeito direta com a categoria. “Acredito que temos de considerar questões individuais e sociais, mas em 34 anos de prática médica pude observar que a busca incessante pelo sucesso – cobrado pela sociedade e transformado em autocobrança –, uma certa dose de altruísmo – a necessidade de cuidar só do paciente –, além da construção de uma fantasia de que ele supostamente detém o poder entre a vida e a morte, do outro inclusive, pode levar o médico negligenciar a própria saúde”, analisa.

Em seu livro “Quem cuida do cuidador?”, o também cardiologista Eugênio Paes Campos, por sua vez, destaca a tecnologia e a competitividade como aspectos que alteraram profundamente o exercício profissional e que levam os médicos a jornadas extenuantes, com o consequente esgotamento físico e emocional, características típicas da Síndrome de Burnout.

Na obra, o autor defende que os profissionais de saúde, tanto quanto os pacientes, demandam necessidade de apoio e suporte, especialmente porque o adoecimento os afasta dos cuidados com o outro. A ideia parte do conceito de “holding”, levantado pelo pediatra R. Winnicott – conjunto de cuidados e fatores de animação que reforçam  o estímulo desses profissionais para continuarem no cuidado para com pacientes.

Mas isso parece não ser tão simples assim. “A sociedade cobra desse profissional um conhecimento sobre tudo. E muitas vezes ele assume essa condição de detentor do saber. Procurar um colega para cuidar de si, portanto, pode significar um fracasso e levá-lo a se sentir inferiorizado”, pontua a psicóloga Camila Seixas. “O preconceito com a psicoterapia dificulta ainda mais a situação”, salienta.

Mudar é preciso

Transformar essa perspectiva passa, necessariamente, por uma mudança que começa na formação médica. Dra. Rosário não tem dúvida de que a academia tem responsabilidade de abordar o assunto no currículo. “Alguns cursos já trazem novas visões no sentido de gerenciamento da carreira, algo mais pragmático, mas que acaba se refletindo no autocuidado. É claro que isso vai ter resultados a partir de um entendimento pessoal”, afirma.

Como lidar com o estresse, como reagir a ondas de raiva ou tristeza do paciente são aspectos apontados pela psicóloga que corroboram com o pensamento da médica. Camila ainda aponta a elaboração de políticas públicas que estabeleçam regras claras sobre carga horária de trabalho, valorização salarial, espaços adequados para descanso, refeições, intervalos. “Também é preciso esclarece à sociedade que o médico não é superhomem!”, acredita.

Para além dos aspectos psíquicos, o corpo também pede atenção. De acordo com o educador físico Bruno Lima, o comprometimento do sono e a liberação de hormônios catabólicos - provocado pelo alto nível de estresse – são situações comuns na rotina dos profissionais médicos, que podem levar ao acúmulo de gordura acima do normal para ser utilizada como fonte de energia. “Sem uma atividade física frequente, isso tem consequências ruins para o organismo”, alerta.

De acordo com Bruno, uma rotina de exercícios proporciona maior produção de hormônios como a dopamina, que alivia dores e atua na elevação da autoestima. Não para por aí: pesquisas apontam a influência da atividade física no desempenho cerebral em função do aumento na produção de dentritos, uma das estruturas mais importantes dos neurônios. “As pessoas depositam uma confiança muito grande nos médicos, eles são porto seguros. Ao ver que o médico cuida de si mesmo, o paciente busca fazer o mesmo. A palavra empolga, o exemplo ensina”, filosofa.

Enquanto a ciência comprova os benefícios dos exercícios na prevenção e tratamento de determinadas doenças, dimensões mais sutis da existência humana acabam ficando em segundo plano, sejam elas no nível emocional, mental ou espiritual. “Para não entrar em contato com elas, são criadas camadas de proteção, que muitas vezes beiram o endurecimento, um distanciamento que impede o acesso a determinadas particularidades fundamentais do vínculo médico-paciente”, adverte a cardiologista.