Alívio para dor: desmistificando os cuidados paliativos

Paliativo adj.s.m. – que ou que tem a qualidade de acalmar, de abrandar temporariamente um mal. A definição do dicionário Houaiss dá uma vaga ideia do significado da palavra que entrou na língua portuguesa no século XVII, especialmente quando se fala de seu uso na medicina. Ao contrário do que se possa pensar, os cuidados paliativos não são uma sentença de morte ou uma ‘lavagem de mãos’ dos médicos por não há mais nada a fazer. “Esse é o primeiro erro clássico de interpretação sobre cuidados paliativos”, alerta a pneumologista Yanne Amorim, que integra o grupo de atenção integral da clínica AMO.

Definido pela OMS como uma abordagem que visa a melhor qualidade de vida do paciente – e familiares – que sofre com doença ameaçadora da vida, a prática busca controlar os sintomas, sobretudo a dor, durante um tratamento. Segundo Dr. Silber Rodrigues Alves, coordenador da comissão de cuidados paliativos do Hospital Cárdio Pulmonar, a abordagem é feita em casos de doenças incuráveis ou naquelas em que o tratamento é muito longo e doloroso. “Queremos cuidar de pessoas que estão em sofrimento, na tentativa de prevenir e aliviar quaisquer sintomas. Isso envolve o doente sob os pontos de vista físico, psíquico, social e espiritual”, esclarece.

A falta de entendimento sobre o assunto gera dois outros equívocos em torno da Medicina de Cuidados paliativos: o preconceito e o constrangimento entre colegas. No primeiro caso, ocorre em virtude do desconhecimento, de relacionar essa abordagem a uma ‘sentença de morte’ para o paciente. O segundo vem do fato de não querer 'invadir' o cuidado oferecido pelo médico assistente. “Entramos para somar no cuidado. É importante que o colega se mantenha próximo para nos ajudar, inclusive, a criar um vínculo com o paciente e familiares, ressalta Dr. Silber.

Esses ‘desencontros’ podem ser justificáveis pelo baixo número de escolas de medicina no Brasil com cursos de formação específica: apenas 14% das instituições de ensino têm em seu currículo cursos de cuidados paliativos, seja na graduação, pós, mestrado ou doutorado. O cenário, de certa forma, se reproduz no número de hospitais brasileiros com equipes de cuidados paliativos. Levantamento da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) mostrou que menos de 10% das unidades hospitalares do país com mais de 50 leitos mantêm esses núcleos, a maioria (58%) no Sudeste.

Comunicação

A saída para que o assunto seja cada vez mais apreciado pela sociedade passe pela noção de que o paciente não será menos tratado. Os cuidados continuam, mas o objetivo deles é outro, o de minimizar sintomas e não curar ou tratar a doença. “É importante deixar claro para o paciente e seus familiares que todos – médico assistente, paliativista e equipe multidisciplinar – estão ali para proporcionar alívio e melhorar a qualidade de vida dele. É preciso que ele entenda que caminharemos todos juntos. Isso impacta muito nos resultados”, defende Dra. Yanne.

Dr. Silber destaca o quanto a comunicação correta faz toda a diferença ao entrar em contato com o paciente. “Trabalho em conjunto com o médico assistente. Geralmente abordo a questão do sofrimento e falo de vida. Não posso cuidar bem de alguém se não conhecer a vida dessa pessoa. A coleta da biografia é o momento de validar o cuidado que será dispensado a ele. Cada pessoa é única, tem uma história e isso precisa ser considerado”.

Para o neurologista Bruno Bacelar, a família de fato deve participar de todas as decisões, mas sempre respeitando a autonomia do paciente. Em determinadas situações, porém, o doente já não dispõe dessa ‘independência’ para verbalizar o que ele gostaria que fosse feito. “Em muitos países, o paciente se manifesta antes ou deixa um testamento vital, elegendo alguém de sua confiança para seguir as orientações que ele gostaria que fossem adotadas quando já não há procedimentos que resolvam o problema dele”, pondera.

Dr. Bacelar ainda coloca o dedo em outra ferida que costuma rondar a abordagem paliativa, a gestão de recursos. “É algo nobre, que precisa ser feito, mas não é parte do escopo de trabalho da equipe de cuidados paliativos”, destaca. Karoline Apolônia, médica paliativista do Hospital Português concorda. “Oncologistas de Harvard notaram que a economia de recursos não era tão significativa. Já a resposta do paciente é tão positiva que ele sobrevive mais e com menos sintomas em comparação com doentes que não receberam esses cuidados”, exemplifica.

Bons ventos

Mas já há sinais de mudança. “A começar por um movimento que pede a criação da especialidade junto ao Conselho Federal de Medicina – hoje é considerada área de atuação –, o ensino médico inicia a abordagem do assunto e novos grupos estão se formando nos hospitais, especialmente no Nordeste e mais especificamente em Salvador. O estado também começa a enxergar a importância desses cuidados e passa a oferecer alguns dos subsídios necessários”, analisa Dra. Karoline, que participou da pesquisa da ANCP.

Dr. Silber também vê o cenário com otimismo. O médico relata que em Salvador, um grupo de estudos da área, formado por 40 pessoas, tinha membros de praticamente todas as instituições de saúde e que também acontece uma movimentação nos hospitais públicos. “Por enquanto só temos uma instituição particular voltada especificamente para a área, mas existem pelo menos duas outras com vocação de cuidados e home care que pretendem inaugurar suas unidades de cuidados paliativos”, adianta.

“É preciso entender que o médico não é um deus, que existem limites e estratégias para aliviar a passagem por uma fase difícil. O conhecimento e interesse pelo assunto vem se ampliando e quem ganha somos todos nós”, finaliza Dra Yanne.